É isso mesmo que você pensou. Um musical inteiramente estrelado por homens, cantando, interpretando e dançando com nada além do talento e da desinibição. Esse é o mote de Naked Boys Singing Brasil, que chega aos palcos de São Paulo no dia 3 de abril, no Teatro Décio de Almeida Prado, em curta temporada.
Depois de passar por mais de 20 países, como Portugal, Porto Rico, Austrália, Itália, Espanha, México, Finlândia, Noruega e até África do Sul, a peça ganha uma nova montagem, pelas mãos do diretor Rodrigo Alfer, da Bacana Produções Artísticas.
Essa é segunda vez que Naked Boys Singing é encenada no Brasil. Em 2003, o premiado diretor Zé Henrique de Paula, do Núcleo Experimental, já tinha dado sua cara para essa comédia icônica, que arrastou milhares de espectadores no circuito Off-Broadway, desde sua estréia, em 1999. (Para os menos familiarizados no assunto, o eixo Off-Broadway apresenta peças menores, menos dispendiosas, em teatros menores, que possuem entre 100 e 499 lugares).
Você pode estar se perguntando: “Mas por que cantar e dançar pelados?”. É simples. Naked Boys Singing traz 14 números musicais no mais clássico estilo de revista de variedades burlescas. Isto é, a peça não traz uma história linear, mas 14 esquetes independentes, unidas por um único fio condutor: o corpo masculino. Nessas cenas aparecem, de formas variadas, os principais tabus de um homem, como a sexualidade, a religião, o tesão, a insegurança com o corpo e a estética e por aí vai.
Ficou ao cargo de Rafael Oliveira (Musical em Bom Português) a difícil tarefa de versionar, de forma divertida, os números cantados com diversos trocadilhos de duplo sentido presentes no original (que têm letras de Stephen Bates, Robert Schrock, Jim Morgan, Mark Winkler, David Pevsner, Rayme Sciaroni e Marie Cain). “É verdade que o musical tem muitos trocadilhos, mas eu não podia ficar numa saia justa [risos]. Felizmente, nudez é uma coisa natural a todos. E, normalmente, quanto mais popular, mais nomes temos para descrever. Complicado seria encontrar vários trocadilhos para física quântica”, se diverte, Rafael.
Curiosamente, preparando o elenco, o ator e diretor Jonathan Faria, que esteve como elenco na montagem brasileira de 2003. Para ele, “revisitar como preparador de elenco me faz sentir-me capaz justamente por toda escola na montagem anterior. Meu foco como preparador é estimular o melhor de cada um em cada número musical, respeitando o contexto atual e disposição artística de cada ator.”
E por falar em elenco, depois de dois meses de seleção, dezenas de currículos analisados, e duas semanas de audição, o suspense sobre os atores escalados para a peça chegou ao fim. Nove nomes, alguns mais conhecidos, outros ainda
inéditos do grande público se preparam ansiosos para começar os ensaios. Douglas Garcia, Gui Giannetto, João Hespanholeto, Leandro Naiss, Luan Carvalho, Ruan Rairo, Silvano Vieira, Thadeu Torres e Tiago Prates já tiveram a experiência de se apresentar nus para a banca durante a segunda fase da audição. João Hespanholeto, bailarino e cantor, estreante em palcos profissionais, não se intimidou com o fato de ter que se apresentar nu. “Eu fui levando os processos de audição sem me preocupar. Ao tirar a roupa, foi tão normal, pelo fato de que todo mundo estava ali, na mesma. Era como se não houvesse julgamento.”
Para Rodrigo Alfer, a peça funciona como um ato de resistência. O pensamento de Ettore Veríssimo, maestro e diretor musical vai de encontro com isso: “No momento cultural que a gente vive, de incertezas, é importante trazer assuntos como esses, que falam sobre sexualidade, os tabus do corpo, relacionamento, o corpo padrão, a beleza, ou seja, coisas que são tabus e deveriam ser mais fáceis de lidar, mas acabam sendo constrangedores no dia-a-dia.” Ettore, que participou da escolha do elenco, fez questão de frisar que a ideia era reunir corpos dos mais diferentes, para endossar o sentido da peça. Para ele, “é importante montar Naked Boys em 2020 pra fazer a gente quebrar os paradigmas de que só o corpo padrão é bonito, trazer as questões de relacionamentos homoafetivos, mostrar que o amor surge de diversas maneiras.” O maestro, que também rege o Coral Câmara LGBT do Brasil, ainda explica que “Naked Boys é fundamental hoje em dia, em tempos em de aumento na LGBTfobia. É preciso mostrar mesmo de uma maneira cômica, como nesse espetáculo que ter preconceitos é absolutamente inaceitável”, afirma.
Conversando com o elenco, é fácil perceber que a nudez ainda é um tabu na sociedade.”Não há costume de retratar homens com nudez frontal em filmes, séries etc. Em compensação, mulheres temos inúmeros exemplos. Penso que isso seja, também, por conta do machismo, em que a mulher era retratada como objeto de prazer. Por esse motivo, também, se forma a figura do ‘machão’, em que um homem não pode ver outro homem nu, pra não fragilizar a sua masculinidade”, diz o ator Tiago Prates. Seguindo o mesmo pensamento, o ator Douglas Toledo reitera a necessidade do espetáculo nos tempos atuais, socialmente mais conservadores. “A institucionalização do retrocesso tirou muitos conservadores do armário. Isso só está acontecendo porque estamos num período de muita consciência, principalmente sobre minorias, diversidade, preconceito e inclusão. Por isso, eu espero que o espetáculo seja muito divertido e prazeroso pra quem vai assistir. Que o público consiga se libertar das suas amarras, ou, pelo menos, provocar questionamentos internos.”
Mas não espere por uma peça com nudez erótica escrachada, já alerta o diretor: “É preciso que haja um pensamento. Um motivo. E o próprio espetáculo, que é dividido em quadros, trata de vários tabus referentes ao corpo masculino. Circuncisão, masturbação, tamanho, ereção indesejada, corpo padrão, após 1 minuto você esquece que estão nus. Não é um espetáculo 'Clube do Bolinha. Pelo contrário. As mulheres também irão se divertir e muito. E quando acontece aquela conexão que só o teatro proporciona, o nu não vem em primeiro lugar. É um espetáculo divertido, honesto, político sem ser panfletário, com atores talentosos e cheios de vida.” Naked Boys Singing vem trazer diversão e muita reflexão para os espectadores. Quem sabe no fim da hora e meia de espetáculo, a mensagem tenha sido tão bem assimilada que o público fique, também nu. Não, apenas, de vestimentas, mas de preconceitos, tabus e outras crises existenciais.
Nota do autor: o musical ainda contará com um décimo “naked boy”, completamente nu, em cena: o pianista Gabriel Fabbri, que além de músico e ator é jornalista e, por acaso, também escreveu essa matéria.